A Polícia Federal afirma que agências da Caixa e do Santander foram usadas para fazer movimentações milionárias para a organização criminosa que dominou parte do setor de combustíveis do País. Os acusados fizeram 9.560 depósitos em espécie que somaram R$ 331 milhões, sem que os órgãos de controle e fiscalização do setor tivessem sido informados, de acordo com relatório da PF.
A evolução do esquema de fraudes de combustíveis no Paraná descoberto pela Operação Tank: uso de fintechs e falta de fiscalização de banco Foto: Reprodução / Polícia Federal
Pelas normas antilavagem de dinheiro estabelecidas pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), para todas as operações suspeitas ou acima de R$ 30 mil, os bancos são obrigados a informar, em detalhes, quem são os clientes que estão fazendo a movimentação, a origem dos recursos e se eles são movimentações normais ou atípicas.
“Não consta a identificação depositante em nenhum desses depósitos, contrariando obrigatoriedade prevista nos normativos do Coaf (Conselho de Controle das Atividades Financeiras) antilavagem de dinheiro”, escreveu o delegado Mateus Marins Corrêa de Sá, do Grupo de Investigações Sensíveis (GISE) da PF no Paraná, no pedido de prisão dos acusados investigados na Operação Tank, encaminhado à 13.ª Vara Federal de Curitiba.
O Estadão procurou a Caixa e o Santander por meio de suas assessorias. O Santander informou que mantém compromisso rigoroso com a legalidade, mas não pode comentar casos específicos.
“O Santander mantém sistemas robustos e contínuos de controle e reitera seu compromisso rigoroso com a legalidade, a integridade e a legislação de Prevenção e Combate à Lavagem de Dinheiro e ao Financiamento do Terrorismo. O Banco esclarece que, por força destas mesmas normas, está legalmente impedido de comentar casos específicos”, informou o banco.
A Caixa informou que “atua conjuntamente com os órgãos de segurança pública nas investigações e operações que envolvem a instituição”. “Tais informações são consideradas sigilosas e repassadas exclusivamente à Polícia Federal e demais autoridades competentes, para análise e investigação.”
O banco estatal informou ainda adotar “procedimentos normativos e tecnológicos para prevenir a utilização indevida de seus produtos e serviços em práticas de lavagem de dinheiro, em conformidade com as normas legais e regulatórias vigentes”. Além disso, afirmou dedicar “atenção especial ao monitoramento de movimentações financeiras com indícios de lavagem de dinheiro, com a devida comunicação ao Coaf”, com o qual colabora por meio de comunicações sigilosas.
Como funcionava a operação
Segundo o delegado, os bancos registraram as movimentações em nome de uma instituição de pagamentos, a Tycoon, mas não identificaram quem eram os clientes dessa empresa. Assim, deixaram de comunicar aos órgãos de fiscalização e controle do sistema financeiro quem de fato estava movimentando aquelas quantias.
O empresário Roberto Augusto Leme da Silva, o Beto Loco, investigado pela PF na Operação Tank e pelo Gaeco na Operação Carbono Oculto Foto: Reprodução / Polícia Federal
A Tycoon Technology Instituição de Pagamento é uma sociedade anônima fechada, constituída em 23 de novembro de 2016. Na época de sua abertura, a empresa tinha capital social de R$ 2 milhões e sede em Curitiba. Segundo a Junta Comercial do Estado do Paraná, a Tycoon tem 99% das ações em nome de Rafael Belon — um dos presos no último dia 28 de agosto.
A empresa, segundo o delegado responsável pelo caso, operava o dinheiro vivo de postos de gasolina por meio de ordens de crédito por teleprocessamento (OCT) e contas-bolsão, nas quais o verdadeiro dono do dinheiro não é identificado para os órgãos de fiscalização e controle do sistema financeiro.
“Os valores portados por Rafael Belon e depositados na Tycoon tinham como origem o ‘abastecimento de combustíveis e outros’, fato bastante atípico, dado que a Tycoon é uma instituição de pagamento e não um posto de combustível ou uma holding que tenha postos sob sua propriedade”, afirmou o delegado em seu relatório.
Com base no documento da PF, a Justiça Federal decretou a prisão preventiva de 14 acusados, muitos dos quais investigados na Operação Carbono Oculto, que foi deflagrada em 28 de agosto, com base nas investigações do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco), do Ministério Público de São Paulo. Entre eles estão os dois empresários apontados como líderes da organização criminosa: Roberto Augusto Leme da Silva, o Beto Loco, e Mohamad Hussein Mourad, o Primo. Ambos tiveram a prisão decretada e estão foragidos.
O questionamento sobre o uso das agências para a movimentação de dinheiro do crime organizado surgiu durante a análise da atuação de duas instituições de pagamento usadas pelo núcleo do esquema no Paraná. A primeira delas era o BK Bank, que movimentou R$ 46 bilhões em cinco anos, dos quais R$ 17,7 bilhões em operações suspeitas, segundo relatório do Coaf. A segunda era a Tycoon.
“A BK atua como intermediária entre a Tycoon e a Duvale (distribuidora de combustíveis), bem como a outras empresas ligadas a Mohamad Hussein Mourad, o Primo, sendo claramente utilizada como camada adicional de ocultação para remeter recursos aos investigados”, escreveu o delegado. Somente através de uma conta, a Tycoon repassou R$ 8,6 milhões ao BK Bank.
O empresário Mohamad Hussein Mourad, o Primo, é um dos acusados de liderar a organização criminosa ligada ao PCC que tomou conta de parte do setor de combustíveis do País. Foto: Reprodução / Polícia Federal
Em nota divulgada no dia da Operação Carbono Oculto, o BK Bank informou que foi surpreendido com a ação da PF e que “conduz todas as suas atividades com total transparência, observando rigorosos padrões de compliance”.
A reportagem não conseguiu localizar a defesa da Tycoon e a de seu sócios. Tanto Mourad, quanto Beto Loco alegam inocência.
Principal origem dos recursos era depósito em dinheiro vivo
A análise das contas mantidas pelo esquema nas agências do Santander e da Caixa indica que a principal origem dos recursos — 96,76% dos créditos efetivos — foi depósitos em dinheiro vivo.
Na Caixa, a Tycoon mantinha duas contas, ambas numa agência em Guarulhos, na região metropolitana de São Paulo. De acordo com a PF, a fintech realizou 1.336 depósitos que somaram R$ 164,9 milhões — tudo sem identificação de quem era o depositante.
O delegado informou à Justiça que enviou oito e-mails para o banco estatal (o primeiro em 14 de junho de 2024) solicitando a identificação do portador e do proprietário dos recursos. “A solicitação só foi atendida em 2 de dezembro de 2024, quase 6 meses depois.” Segundo ele, a instituição identificou como depositante Rafael Belon para todos os depósitos acima de R$ 50 mil.
No relatório, o delegado afirmou que a Caixa “não forneceu a lista de localidades de coletas de recursos como visto nas outras instituições, impedindo qualquer tentativa de identificação da origem dos valores em espécie”. E isso apesar de o banco ter feito 910 comunicações suspeitas ao Coaf a respeito de depósitos em dinheiro nas contas da Tycoon.
Em uma das contas abertas na Caixa, os depósitos não identificados foram praticamente a única origem de recursos da conta, perfazendo 98,42% do total de créditos efetivos. E os principais destinatários do dinheiro que passou por essa conta foram o BK Bank, que ficou com R$ 126.694.615,74; a GGX Participações, empresa em nome de um primo de Mourad, que ficou R$ 21.694.255,68, e a Lega Serviços Administrativos, outra empresa em nome de um parente de Mourad, que recebeu R$ 8.550.750,44.
“Ante o exposto, forçoso concluir que a conta da Tycoon junto a Caixa foi constituída e mantida com a exclusiva finalidade de receber vultosos recursos em espécie de terceiros e então destiná-los a empresas de familiares do investigado Mohamad Hussein Mourad, o Primo, e a empresa Duvale.”
Como funcionava o esquema do recolhimento do dinheiro dos postos de combustíveis seguindo a Polícia Federal: milhares de depósitos em dinheiro vivo foram feitos sem identificação da origem Foto: Reprodução / Polícia Federal
No caso do Santander, o delegado diz que foram contabilizados R$ 91,2 milhões em créditos efetivos na conta 7560, numa agência no bairro do Bom Retiro, em Curitiba. Ali, “90,80% do total refere-se a créditos com o histórico OCT”. Foram registradas 8.224 transações com esse histórico, entre 20 de abril de 2020 e 10 de março de 2022.
“Questionada sobre o significado deste histórico, a instituição financeira informou que tais créditos decorrem do serviço de ‘coleta de valores’”.
Trecho do relatório da Operção Tank do delegado em que aponta a falta de controle e fiscalização dos depósitos em dinheiro feitos na Caixa pela organização criminosa Foto: Reprodução / Polícia Federal
O delegado atesta em seu relatório que o Santander fez 879 comunicações ao Coaf, das quais 878 tratavam de depósitos em valor acima de R$ 50 mil. Mas, ainda segundo a PF, nessas comunicações, “não consta análise de risco pelo banco”. E conclui: “Essas comunicações indicaram a empresa Proforte S/A Transporte de Valores como depositante dos valores, sem indicar, contudo, o proprietário.”
Para o delegado, os valores coletados por carro-forte “por óbvio já pressupõe grandes quantias de recursos”, e, sendo a Tycoon uma instituição de pagamento, era evidente que os recursos não eram dela, mas de terceiros, o que “foi deliberadamente ignorado pelo Banco Santander”. Ainda segundo a PF, o banco sabia que os pontos de coleta do dinheiro eram postos de gasolina e aceitou depósitos nas contas da Tycoon “de numerários de propriedade de terceiros” sem identificar os depósitos, “inviabilizando o reconhecimento da origem dos recursos”.
“Forçoso concluir que a conta da Tycoon junto ao Banco Santander foi constituída e mantida com a finalidade de servir como repositório de elevados valores em espécie, ocultando a identificação dos depositantes e, então, remetendo-os aos postos de combustível que compõe o nível inferior, assim como a outras empresas ligadas aos investigados”, afirmou o delegado.
As contas-bolsão
Além das OCTs, a organização criminosa usou “contas-bolsão” em larga escala para a lavagem de centenas de milhões de reais. As contas ficavam na Tyccon e no BK Bank. “As instituições de pagamento Tycoon e BK/Berlin movimentaram, ao longo dos últimos anos, centenas de contas bancárias em seu próprio nome, mas mantendo a titularidade das contas em sigilo para terceiros, sem registrar formalmente o relacionamento com os verdadeiros proprietários no Cadastro de Clientes do Sistema Financeiro Nacional“.
Por isso, o delegado afirmou que há “claros indícios” de que a BK Bank atuou como intermediário financeiro entre a Tycoon e a distribuidora de combustíveis Duvale – Beto Loco seria dono de 65% da distribuidora e Mourad, de outros 15% –, assim como para outras empresas ligadas a Mourad. O relatório então conclui afirmando que que a Tycoon remeteu ao BK Bank R$ 665.029.034,05.
“A totalidade dessas transações ocorreu de forma a ocultar origem e destino de recursos, travestindo-se em atos típicos de lavagem de dinheiro.” Ao todo, Rafael Belon é acusado pela PF de movimentar ao menos R$ 1,24 bilhão em “transações com características típicas de lavagem de dinheiro” com a Tycoon e o BK Bank.
Fonte: Estadão