Sistema prisional: congresso das APACs marca trajetória de 50 anos

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Celebrando uma trajetória de 50 anos, o movimento das Associações de Proteção e Assistência aos Condenados (APACs) deu início nesta noite (22) ao seu 9º congresso com o tema “Ninguém é irrecuperável”. No evento, que ocorre em Belo Horizonte até o próximo sábado (25), será feito um balanço desse cinquentenário e discutidos os desafios do presente.

As APACs são organizações da sociedade civil, sem fins lucrativos, que administram unidades prisionais onde aplicam uma metodologia própria, que aposta na educação e no trabalho como ferramentas de recuperação dos presos. Elas se articulam em um movimento coordenado pela Fraternidade Brasileira de Assistência aos Condenados (FBAC).

Entre os resultados positivos reivindicados pelas APACs estão o seu melhor custo comparado a unidades prisionais tradicionais, a ausência de violência ou rebeliões e as poucas fugas. O principal indicador usado pelo movimento para aferir seu sucesso é a baixa reincidência. Segundo levantamento da FBAC, 13,9% dos presos que cumprem pena nas unidades das APACs voltam a cometer delitos, índice inferior ao observado nas prisões convencionais.

Em 2020, um estudo conduzido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) sobre a reincidência criminal no país entre 2015 e 2019 apontou uma média nacional de 42,5%. Os próprios pesquisadores envolvidos, no entanto, advertiram que “possivelmente o valor seria mais alto, caso fosse ampliado o corte temporal analisado”.

Sete estados

Atualmente, há 63 unidades das APACs – entre masculinas e femininas – em funcionamento em sete estados do Brasil: Espírito Santo, Maranhão, Minas Gerais, Paraná, Rio Grande do Norte, Rondônia e Rio Grande do Sul. Mais 79 estão em diferentes estágios de implantação. O movimento vem se expandindo. “Esse é o principal desafio. Inclusive o interesse da administração pública vem aumentando. É preciso crescer com sustentabilidade, mantendo os resultados positivos. Para isso estamos investindo em novas ferramentas de gestão”, diz a gerente jurídica e de parcerias da FBAC, Tatiana Flávia de Souza.

O movimento tem Minas Gerais como seu principal pilar: 46 das 63 unidades do país estão no estado. Uma das razões para esse cenário é o apoio institucional do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), que desenvolve o Programa Novos Rumos na área de execução penal: a iniciativa tem como um dos seus principais objetivos a mobilização de juízes e da sociedade civil para o bom funcionamento da metodologia e para a expansão das APACs.

Nesse sentido, a escolha de Belo Horizonte como sede do congresso que marca a trajetória de 50 anos não é por acaso. Estão reunidos na capital mineira convidados nacionais e internacionais, entre juristas, gestores públicos, representantes de organizações não governamentais, lideranças religiosas e apoiadores da metodologia das APACs. Após a cerimônia de abertura do congresso, o início dos trabalhos recebeu a benção do arcebispo de Belo Horizonte e presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), Dom Walmor Oliveira de Azevedo.

Mútua colaboração

Segundo Tatiana, as APACs buscam oferecer condições para que os presos criem consciência sobre os erros que cometeram e sobre os males que fizeram para a sociedade. “Normalmente os sistemas prisionais tradicionais estão centrados apenas na função punitiva da pena. Nós temos a preocupação de propiciar condições para a recuperação social. Oferecemos os serviços que a lei de execução penal estabelece para os condenados, mas com uma proposta terapêutica penal própria, com enfoque na valorização humana e na dignidade humana”, afirma.

Ela explica que este trabalho é gerenciado pela sociedade civil em regime de mútua colaboração com a administração pública. O próprio movimento das APACs manifesta-se contra a privatização do sistema penitenciário por considerar que experiências internacionais nesta direção culminaram em resultados negativos. Assim, defendem um modelo baseado em parcerias com os tribunais de Justiça e com os governos estaduais, que assumem o custeio dos centros de reintegração social, como são nomeadas as unidades administradas pelas APACs.

Norma e regras

Há uma disciplina rígida e um conselho composto pelos próprios presos contribui para o respeito das normas e das regras. Não há presença de policiais. Durante o dia, todos devem trabalhar e estudar. Por meio de parcerias, os presos também têm acesso à assistência psicológica e jurídica. Em alguns estados, há parcerias sólidas com instituições de ensino superior. A Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), por exemplo, desenvolve há anos projetos de extensão na unidade da APAC de Santa Luzia, na região metropolitana de Belo Horizonte.

A religiosidade está presente no desenvolvimento da metodologia. O trabalho das APACs tem origem na experiência realizada em 1972, em São José dos Campos (SP), por um grupo de voluntários cristãos liderados pelo advogado e jornalista Mario Ottoboni. Na época, eles deram início a atividades de evangelização junto aos presos do presídio Humaitá.

Segundo a FBAC, a espiritualidade é ecumênica, isto é, os presos são incentivados a assumir a fé que professa e o respeito à religião do outro é considerado fundamental. Além disso, as famílias são chamadas para se envolverem no processo de recuperação e participam de encontros formativos e de celebrações.

Ponderações críticas

As APACs respondem por um universo pequeno se considerado o total de presos no país. Segundo levantamento do Departamento Penitenciário Nacional (Depen) do Ministério da Justiça e Segurança Pública, em junho do ano passado, o Brasil possuía 673.614 pessoas privadas de liberdade em celas físicas e 141.002 em prisão domiciliar. Atualmente, as APACs têm capacidade para atender 6.419 presos. As unidades são pequenas e idealizadas para receber no máximo 200 pessoas.

Para as pesquisadoras do Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública da Universidade Federal de Minas Gerais (Crisp/UFMG), Isabela Araújo e Isabella Matosinhos, a experiência das APACs se desenvolve diante da negligência da gestão do Estado, que deveria se responsabilizar pelo acesso a direitos básicos e pela futura reinserção social do preso. As duas publicaram, em setembro do ano passado, um artigo crítico na coluna que o Crisp mantém em parceria com a plataforma Justificando, voltada para o debate na área do Direito.

Com base no princípio do Estado laico, elas questionam a aposta na ressocialização pela fé e a ênfase no ideário da culpa individual, desconsiderando fatores sociais. “Dado a forma que é apresentada, a APAC hoje é comumente vista como uma fórmula de gestão quase mágica do sistema prisional brasileiro”, avaliam.

As pesquisadoras também fazem ponderações sobre as taxas de reincidência. Elas observam que os presos admitidos pelas APACs passam por um processo que envolve diferentes etapas: precisam manifestar interesse, receber o aval de um juiz e são entrevistados por funcionários da unidade desejada, que por fim decidem se acolhem ou não o pedido. Nesse sentido, seria possível selecionar indivíduos considerados menos propensos a reincidir.

“Não se sabe ao certo qual a métrica usada pelos funcionários para a escolha, apenas que é necessário que a família resida na comarca que está instalada a unidade ou que o crime tenha sido cometido nesta mesma comarca. O fato de as APACs não acolherem qualquer indivíduo que pleiteia a transferência, ainda que existam vagas, aponta para a existência de algum filtro. As entrevistas e a escolha são pautadas em impressões subjetivas, como a vontade de mudar de vida e a sinceridade em se adequar à ideologia da APAC”, pontuam.

Edição: Fábio Massalli

Fonte: Léo Rodrigues – Repórter da Agência Brasil – Rio de Janeiro